22 novembro, 2011

O HOMEM É UM SER CARENTE

Na sua obra "O Homem, sua Natureza e seu Lugar no Mundo", Arnold Gehlen (1940) considera que a qualidade essencial do homem reside na ausência de adaptação a um determinado meio-ambiente. Face à elevada especialização e à segurança instintiva do animal, o homem surge biologicamente como um «ser deficiente», devido à sua falta de especialização, à sua imaturidade e à sua pobreza de instintos. Para sobreviver, o homem tem de compensar esta falta de especialização com a sua própria ação, a qual lhe permite construir um mundo cultural, onde surgem as suas mais elevadas realizações espirituais e culturais.

Gehlen chama o homem de «ser incompleto» (ou "em busca permanente") e pensa que foi constrangido, por carência de adaptações morfológicas especiais, a fabricar o seu próprio mundo de cultura, através da sua ação: «Com efeito, morfologicamente, o homem, em contraposição aos mamíferos superiores, está determinado pela carência que é necessário explicar no seu sentido biológico exato como não-adaptação, não-especialização, primitivismo, isto é: não-evoluído; de outra forma: essencialmente negativo» (Gehlen). Isto significa que a sua conduta universal se caracteriza pelo conceito de «abertura ao mundo«, em contraste com a «vinculação ao meio» que caracteriza a conduta dos animais: "[...] O homem é um ser desesperadamente inadaptado. É de uma mediania biológica única no seu género [...] e só conseguiu sair desta carência mediante a sua capacidade de trabalho ou o dom da ação; isto é: com as suas mãos e a sua inteligência. Precisamente por isso ficou ereto, circum-spectans (olhando ao redor) e as suas mãos estão livres" (Gehlen).

O comportamento animal está «vinculado ao meio», enquanto a conduta humana está «livre do meio» e, por isso, é uma conduta «aberta ao mundo». O animal tem um meio limitado; o homem, pelo contrário, vive num mundo aberto; é um "ser aberto ao mundo". O meio ambiente (Umwelt) significa um espaço vital perfeitamente limitado sobre o qual se estabelece de forma específica um ser vivo. O mundo (welt) significa, pelo contrário, um horizonte vasto que rompe, por definição, qualquer limitação precisa e elimina toda a fixação, sendo por isso mais amplo que o espaço vital imediato. Daqui resulta que o animal é um ser ligado ao meio porque está ligado ao instinto, e que o homem está aberto ao mundo, precisamente porque carece da adaptação animal a um "ambiente-fragmento": "A abertura ao mundo, vista (como uma incapacidade natural de viver num ambiente-fragmento), é fundamentalmente uma tarefa" (Gehlen). Isto significa que, face à carência de um meio ambiente (circum-mundo) com distribuição de significados realizada por via instintiva, o homem tem de realizar essa tarefa, mediante os seus próprios meios e por si mesmo, isto é, o homem precisa «transformar por si mesmo os condicionamentos carenciais da sua existência em oportunidades de prolongamento da sua vida" (Gehlen). O homem é "um ser práxico porque é não-especializado e carece, portanto, de um meio ambiente adaptado por natureza. A essência da natureza transformada por ele em algo útil para a vida chama-se cultura e o mundo cultural é o mundo humano" (Gehlen). A partir desta noção de homem como um ser carencial e, por isso, um "ser em-risco", Gehlen elabora uma imponente teoria da cultura como conceito antropobiológico e do homem como «um ser de cultura por natureza», porque "não-terminado" em sua relação com o meio ambiente.

Para as filosofias ontologicas, essencialistas, incluida algumas correntes de cunho teológico cristã, a linguagem, como parte da cultura adptativa do homem, seria um mero instrumento, um meio para a descoberta da verdade, que pode ser aparente para uns, ou se esconder por trás das aparências. Essa linguagem se manifestaria, por exemplo, na figura repititiva da invocação da divindade tão comum tanto no Antigo como no Novo Testamento da Bíblia. Contudo, a questão não muda. O homem precisa invocar Deus porque é carente, e sem isso não consegue "sobreviver" no meio ambiente em que vive.

Para os retóricos dos mais diversos matizes, contrariamente, o ponto comum é a convicção de que a linguagem não é apenas o máximo de acordo possível, é o único. Em outras palavras, devido a sua insuficiência e carência, o ser humano é incapaz de perceber quaisquer verdades a respeito do mundo, ou fora dele, independente de um contexto linguistico, seja pela Palavra, o Logos ou a invocação. Tal realidade artificial é a única que o consegue complementar e "satisfazer".



GEHLEN, Arnold. Der Mensch. Seine Natur Und Seine Stellung in Der Welt. Frankfurt: VK, 1993.

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